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    Entrevista com Bruna Andrade: 3 anos no Iraque

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    Entrevista com Bruna Andrade: 3 anos no Iraque

    Quantos brasileiros que moram no Iraque você conhece? Bom, pode ser que você seja um conhecido ou amigo de um dos pouco menos de 100 brasileiros que vivem no país, segundo dados fornecidos pela Embaixada Brasileira no Iraque. De fato não é muito comum conhecermos pessoas que morem em países em conflitos, e dos sérios.

    De acordo com a embaixada, a maioria dos brasileiros no Iraque hoje têm dupla nacionalidade (brasileira/iraquiana), boa parte nem se quer fala português. Esse grupo são formados especialmente por jogadores de futebol e de voleibol, e funcionários de multinacionais, normalmente instaladas no Curdistão Iraquiano (norte do país). Quando questionei ao encarregado de negócios da Embaixada Brasileira no Iraque, Herbert Drummond, sobre a situação do turismo no país ele me informou que ainda há turismo, principalmente o religioso que leva as pessoas para as cidades sagradas dos xiitas. Porém o turismo normal, por prazer e diversão foi totalmente eliminado do país devido a falta de segurança.

    Recentemente eu conheci através do Facebook uma brasileira que mora no país há 3 anos, acredite. Bruna Andrade Pagnan mora em Duhok, cidade localizada ao norte no Curdistão Iraquiano. Como disse, não é sempre que conhecemos alguém que mora no Iraque, então logo que a vi já eu a convidei para uma entrevista aqui no blog, pra gente poder matar um pouquinho da curiosidade de como é viver no Iraque. Confira a entrevista abaixo:

    Paisagens da região

    Paisagens da região. Foto: Arquivo pessoal de Bruna Andrade

    TLDC: Você já vive há 3 anos no Iraque. Há 3 anos atrás a reputação do país já não era das melhores. Porque você decidiu viver nele? Sentiu algum medo ou receio antes de se mudar?

    Bruna: De início meus planos não eram acabar aqui, no fundo eu sabia que algum dia eu iria viver no Iraque, mas não tão rápido. Meu marido é curdo iraquiano, mas morava na Holanda quando eu o conheci, então fui viver lá. Por alguns meses vivi em Almere, depois como a questão do visto não se resolveu partimos para o plano B, no caso, o Curdistão.
    Estamos falando de oriente médio, infelizmente aqui você acorda em paz e vai dormir em meio ao holocausto, então sempre rola uma insegurança. Claro que eu tinha medo, mesmo meu marido me tranquilizando inúmeras vezes, sou brasileira e tinha a mesma ideia sobre o Iraque que todo brasileiro tem: cada esquina tem um radical islâmico coberto de bomba! Mas não e assim, as coisas têm uma estabilidade.

    TLDC: Qual foi a reação da sua família e dos seus amigos quando você deu a notícia que estaria indo morar no Iraque?

    Bruna: Meus pais não se preocuparam tanto, penso que por que os tranquilizei, fui mostrando vídeos, fotos, traduzia as coisas que meu marido dizia para esclarecê-los. Sempre tem a possibilidade de dar errado, mas felizmente, deu tudo certo. Até aqui. Já meus amigos não queriam – e não querem – que eu vivesse aqui, pela imagem de perigo que o Iraque tem, pela distância, pela cultura opressora e pela discrepância de tudo isso em relação a minha personalidade.

    TLDC: As diferenças culturais entre Brasil e Iraque são enormes. Como foi para você e o que foi mais difícil na adaptação a cultura iraquiana? Você teve que seguir algum dogma ou doutrina religiosa?

    Bruna: A adaptação é constante, ainda acordo e durmo me adaptando. Tenho dias horríveis, que tenho muita vontade de voltar para o Brasil, ou imigrar para outro país, e tenho dias em que estou mais em paz com isso tudo, o mais difícil é essa pressão machista constante, esse sentimento de ter 10 anos de novo, de ter que viver sob o domínio de olhares fiscalizadores. O Brasil também é um país machista e conservador, mas de um jeito velado, a gente observa com clareza a real opinião do brasileiro na internet e nas ruas, principalmente com o surgimento das igrejas neopentecostais incentivando uma linha mais conservadora, mas aqui não, essa “poda” surge dentro de casa e se estende sociedade a dentro, preenchendo cada espaço, por mais que você tenha a liberdade de ir e vir – as mulheres curdas do Iraque são bem mais independentes em relação a outros países do oriente médio – você sente a pressão pelo olhar masculino, as cantadas, as tentativas de toques, mas eu sei lidar bem com isso, saio tranqüila, nunca passo apertado!

    TLDC: Em algum momento, ser mulher (estrangeira) no Iraque foi ou é um problema? Já passou por alguma situação inusitada que possa nos contar?

    Bruna: Bom, a questão de ser mulher por si só já é um problema, e ser brasileira, dois! Você nunca sabe quando estão sendo hospitaleiros – e o povo curdo é exageradamente hospitaleiro com todo mundo – e quando estão mal-intencionados. Eles são doidos pelo Barcelona e o Real Madrid, então perguntam muito se eu conheço o Neymar e os outros jogadores brasileiros que atuam nesses dois times, (e que eu, na minha ignorância “futebolistica”, não sei citar um nome além dos do time do Corinthians, rs) as perguntas são feitas instantaneamente a palavra Brasil. Logo depois me perguntam se eu sou do Rio de Janeiro ou de São Paulo, ou seja, todos os outros 24 estados foram engolidos em um tsunami gigante! Estou contando isso só para ilustrar as primeiras reações,então apos todo esse questionário eles começam a dar em cima descaradamente, pedem telefone, whatsapp, coisas que eles não fazem com a mesma facilidade com mulheres daqui.

    Mandar currículo pode ser um desafio, porque você tem que saber na mão de quem está entregando, se não, adeus paz. Acho que a coisa mais abusiva que já me aconteceu aqui foi quando levei um currículo em um hospital e conversei com um médico que me pareceu bastante centrado, gente boa, um comportamento profissional; passado uns dois dias ele começou a me enviar mensagens pela internet, me dizendo que iria me dar uma força para o trabalho e que tinha me achado muito competente, até aí tudo bem, mesmo assim já fiquei com um pé atrás, porque conheço bem os homens daqui. Na segunda mensagem ele já começou a insinuar outras coisas, dizendo que eu era bonita, que poderia me dar uma vida confortável se eu fosse mulher dele e que o procurasse no hospital. Bloquei o e-mail, mas antes avisei que da próxima iria até a policia. Eles são terríveis!

    Ruínas de uma antiga casa na região

    Ruínas de uma antiga casa na região. Foto: Arquivo pessoal de Bruna Andrade.

    TLDC: Você reside na parte norte do país conhecida como Curdistão Iraquiano, mas precisamente na cidade de Duhok. Como você apresentaria a sua cidade para outras pessoas?

    Bruna: A cidade é linda, para quem curte oriente médio, é bem planejada, com o branco, o amarelo, o bege e o verde predominantes, cheia de belos casarões com arquitetura árabe, mas mesmo as ruelas com casas mais simples têm seus encantos. Deixa a desejar quanto ao tratamento de esgoto, que nas regiões mais pobres da cidade corre a céu aberto, e na limpeza das vias. A cidade serpenteia por entre as montanhas, quase um milhão de casas, as mesquitas, exóticas, tornam o momento do chamado para a oração, até para mim que sou atéia, mágico, único. As vilas aos arredores, compostas por rústicos casebres, entre as árvores tortas, e por vezes secas, são de uma beleza indescritível, é comum as mulheres sentadas reunidas e os homens pastoreando.

    Os mercados do centro são vibrantes, gente oferecendo serviços e produtos em voz alta, os aromas dos temperos mais diversos, o brilho dos “comaches” , tipos de tecidos usados nas vestes femininas curdas, as ruelas que formam um emaranhado que só quem nasceu aqui sabe entrar e sair com facilidade. As mulheres passam em grupos apressados, vestidas em suas abayas, enquanto os homens se esgueiram à beira das lojas.

    Os parques, muito verdes, são um oásis em meio ao amarelo das casas, lá as familias se reúnem todos os dias, em especial na sexta – feira, dia sagrado no islã, e estão sempre lotados de crianças. Se pudesse indicar os mais agradáveis seriam Azadi Park, que tem um paisagismo interessante, com cascatas, pontes e quiosques de madeira, o parque Gali (Gali é o nome que os curdos dão para um desfiladeiro), este parque fica aos pés da represa da cidade, com cafés, fontes naturais e vegetação composta principalmente de pinhos, com um parque para os pequenos, como a maioria dos lugares aqui, é voltado para a família, a estrada que circunda o local, sobe até as margens da represa, a visão do parque no topo do paredão tem aproximadamente 300 metros de altura, também é possível observar a cidade ao fundo. Zawita é outra vila ligada a Duhok que eu recomendaria, tradicional no ramo de peixe assado na brasa, lá é possível escolhê-lo ainda fresco e comê-lo assado na hora em forno à lenha, que lembram o nosso churrasco de chão gaúcho, as mesas são dispostas montanha a cima em largos espaços esculpidos nas pedras em forma de zigue zague.

    Amedi não fica em Duhok, mas é uma cidade há uma hora de carro daqui ao norte, construída sobre uma colina, como se ela tivesse sido estrategicamente serrada para abrigá-la. Dez minutos de distância de Amedi está Sulave, que abriga os hotéis e mercados de Amedi, uma não é completa sem a outra, são cidades turísticas. Os mercados em Sulave ficam montanha à cima, nas beiras de um córrego, e dentro dele as mesas, onde os clientes comem com os pés na água. Não bastasse isso tudo, tem-se o privilégio de estar no berço da civilização e uma das prováveis origens do povo cigano.

    Cidade de Duhok

    Cidade de Duhok. Foto: Imagem internet

    TLDC: Além da parte norte do país onde está localizado o Curdistão Iraquiano, é fácil e seguro viajar para as partes sunitas e xiitas ou cruzar fronteiras pelas estradas? As estradas são muito militarizadas?

    Bruna: Dentro dos limites do Curdistao tudo é seguro, é claro que não há um selo de 100% de confiabilidade, assim como em nenhuma outra parte do mundo. Esses limites são as cinco províncias curdas: Erbil (ou Hawler, em curdo), Duhok, Sulaimanya, Halabja e recentemente foi anexada ao território curdo Kirkuk. No espaço entre o Curdistão e Bagdad está o estado islâmico, então não aconselharia uma aventura por terra além das fronteiras curdas. Os curdos são bem maleáveis tratando-se de religião, aqui existem yazidis, cristãos protestantes e católicos, muçulmanos sunitas e xiitas, e todos convivem bem, então acontece apenas um agrupamento em bairros dessas religiões, mas não segregação, não existe nenhum perigo ligado a religião.

    As rua e estradas são amplamente militarizadas, pontos de checagem são uma realidade constante, por tanto, andar com documentos em mão evitará transtorno.

    TLDC: O Iraque tem várias capitais por causa das próprias divisões internas, porém a mais famosa e conhecida por todos é Bagdá. Você já foi para lá? Acha viável ou considera ir algum dia?

    Bruna: Quero muito conhecer Bagdá um dia, já ouvi falar de vários brasileiros que moram lá, principalmente jogadores de futebol. Estou adiando esse momento há algum tempo, mas se permanecer no Iraque, logo será impossível, por questões burocráticas, não ir à Bagdá.

    TLDC: Sei que você mora num lugar em que é mais seguro, porém alguma vez você chegou a presenciar algum atentado ou algo do tipo?

    Bruna: Nunca

    TLDC: Tudo que vemos na mídia em relação ao Iraque são notícias ruins, conflitos, guerras, mortes. Exista uma parte boa de morar no país? Qual seria?

    Bruna: Dentro de onde estou, a vida segue “normal”, o lado bom é o contato com esta cultura tão diferente, o enriquecimento pessoal, a experiência… Mas acho que esse ganho existe toda vez que saímos do conforto do nosso país ou mesmo em uma troca de cidade.

    TLDC: Você acredita que algumas regiões do Iraque estão aptas para o turismo? Ainda existe algum tipo de turismo no Iraque?

    Bruna: Existe muito turismo na região curda, o fluxo é principalmente de russos, ucranianos, turcos curdos e outros, países próximos que conhecem a segurança da região. Eu recomendaria uma visita ao Iraque curdo, se pudesse, a todo Iraque, o valor histórico deste lugar é imensurável, para quem gosta de oriente médio, é um lugar que não pode passar batido.

    Gostaria muito de agradecer a Bruna por ter concedido essa entrevista super legal e que acho que nos mostra uma versão diferente do Iraque que costumamos ver todos os dias nos noticiários.

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    Olá! Meu nome é Leonardo, tenho 33 anos, sou de Brasília - DF, mas moro na Europa há mais de 8 anos. O desejo de viajar somou com uma frustração que aconteceu e me fez sair do Brasil. Eu amo viajar, conhecer lugares, pessoas e culturas, tanto que resolvi criar o blog Tô Longe de Casa para poder compartilhar com as pessoas todas essas minhas experiências pelo mundo.

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